terça-feira, 2 de abril de 2013

Artigo - A Comissão Nacional da Verdade: os primeiros passos do Brasil


Heed Mariano Silva Pereira[1]
Juliana de Paula Bigatão[2]

  
Um forte debate tem tomado as páginas dos jornais e interferido constantemente na relação do Poder Executivo com os membros das Forças Armadas, tanto da ativa quanto da reserva no Brasil: a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV). A função desta comissão, estabelecida pela Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, é apurar as graves violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, com a finalidade de promover o direito à memória e à verdade histórica e a reconciliação nacional.[3] 
A CNV começou a ser desenhada em 2004, quando o então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, propôs a organização do “Arquivo da Intolerância”, cuja função era tornar público o acesso a todo e qualquer documento que estivesse sob a tutela do Estado a respeito do regime militar no Brasil (1964-1985). Entretanto, uma lei assinada pelo governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso, restringia severamente o acesso a esses documentos e, juntamente ao debate público que surgiu sobre o tema, o projeto do presidente Lula acabou por não vingar.
Em 2007, começou-se a discutir a possibilidade de uma Justiça de Transição, que dependeria do esclarecimento dos atos de violação aos direitos humanos praticados durante os “anos de chumbo”, para que as decisões tomadas pela Justiça entre o período de transição do regime militar para o regime democrático fossem revistas e as vítimas e seus familiares tivessem direito à reparação. Foi neste momento que a ideia da criação de uma CNV começou a ganhar força, o que se confirmaria a partir da reformulação do Programa Nacional de Direito Humanos (PNDH-3), ao final de 2009 e cujas ideias surgiram na 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos.
A partir daquele momento, um intenso embate entre o Ministério da Defesa e a Secretaria Especial de Direitos Humanos foi travado nos bastidores do governo e na imprensa nacional. O primeiro apresentava muitas ressalvas quanto a criação de uma comissão da verdade; já o segundo a entendia como necessária à consolidação da democracia no Brasil. O presidente Lula determinou, por decreto, a criação de um grupo de trabalho interministerial para a elaboração do projeto de lei que criaria a CNV e em seguida o remeteria para votação no Congresso Nacional. Entretanto, foi sua sucessora, a presidenta Dilma Rousseff, que sancionou o projeto de lei em 18 de novembro de 2011, após muita negociação envolvendo os ministros da Defesa e dos Direitos Humanos, os militares, além de deputados e senadores que tiveram que se posicionar quanto ao conteúdo e viabilidade do projeto.
No mesmo período em que se discutiu a criação da CNV, a Lei de Acesso à Informação também foi amplamente debatida, negociada e aprovada, pois seria essencial para garantir o acesso irrestrito aos arquivos do período militar e a todos os demais documentos de natureza pública ao longo dos anos, desde que respeitados os prazos mínimos e máximos para divulgação, dependendo do grau de sigilo.  
Neste momento o Brasil seguia os passos de outros países que já haviam passado pela experiência de criar comissões da verdade, como: a Argentina (1983), o Paraguai (2004), o Chile (1986 e 2003), o Uruguai (1985 e 2000), o Peru (2001), o Equador (1996 e 2008), a Bolívia (1982), a Guatemala (1999), El Salvador (1992), o Panamá (2001), o Haiti (1995), o Canadá (2009), o estado da Carolina do Norte nos Estados Unidos (2004), o Timor Leste (2002 e 2005), a Indonésia (2005), a Coréia do Sul (2000 e 2005), o Nepal (1990), a África do Sul (1995), Uganda (1974 e 1986), o Sri Lanka (1994), as Ilhas Maurício (2009), as Ilhas Salomão (2009), o Togo (2009), o Quênia (2009), o Zimbabué (1985), o Chade (1991), a Nigéria (1999), Gana (2002), Serra Leoa (2002), o Marrocos (2004), a República Democrática do Congo (2004), a Libéria (2006), a Alemanha (1992) e a República Federal da Iugoslávia (2001).[4] Cada país teve seus motivos para criar tais comissões; porém, a finalidade de conhecer a verdade e fazer justiça àqueles que lutaram pela democracia em seus países esteve presente na maioria dos casos.
Apesar desse intenso debate, muitos se perguntaram, por que criar uma comissão verdade? Em que momento criá-la? Para que serve? Em primeiro lugar, conforme já mencionado, o propósito dessas comissões foi realizar uma análise profunda do que ocorreu nos países que vivenciaram a experiência de um golpe militar ou de uma guerra civil e, consequentemente, presenciaram episódios de violação dos direitos humanos. Segundo Heraldo Munõz, subsecretario geral das Nações Unidas (ONU), diretor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para a América Latina e Caribe, e um dos maiores especialistas no tema, o elemento fundamental na criação de todas as comissões da verdade “é fazer justiça, ajudar a justiça[5]. Embora de acordo com seus relatos a maioria das comissões já criadas não tenha responsabilidade jurídica, elas cumprem uma função complementar importante, de garantir a transição entre o período autoritário para o Estado Democrático de Direito.
Para Priscilla Hayner, fundadora do Centro Internacional de Justiça de Transição, as comissões da verdade

(...) também asseguram que a própria narrativa torne-se o veículo principal para o reconhecimento do direito de as vítimas contarem a sua própria verdade, opondo-se à verdade oficial construída durante os anos de arbitrariedade e violência. Ao fazer isso, restaura-se a dignidade dos que sofreram esses abusos e violações ao mesmo tempo em que o Estado, mediante o mecanismo institucional da Comissão da Verdade, passa a legitimar outra versão da História.[6]

Mas, em que momento? Para Munõz, “os processos de transição têm seus tempos e seus tempos são ditados pela realidade local. O importante é que a justiça de transição aconteça e talvez alguns países, como Brasil, tomam mais tempo por causa da natureza do sistema politico, da realidade política (...)[7]. Ou seja, o país deve passar por um amadurecimento político-institucional, bem com rever algumas de suas leis, tal como a Lei de Acesso à Informação, para que este momento torne-se oportuno. 
Por fim, a outra pergunta a ser respondida é sobre sua finalidade. Tanto no Brasil como nos demais países em que foram criadas, as comissões da verdade tem com função primordial contar a história do que ocorreu com aqueles que se dispuseram a enfrentar estes regimes e que sofreram as mais violentas formas de punições, tais como torturas, desaparecimentos forçados e morte, praticados por agentes do Estado, em nome de suas crenças e ideologias. No caso do Brasil, muitos destes casos ainda permanecem sem respostas. Com o funcionamento da CNV, espera-se que as famílias tenham a possibilidade de saber o que ocorreu com seus seres queridos, assim como a sociedade em geral conhecer a verdade dos acontecimentos históricos durante o regime militar.
Além disso, as comissões tem também o objetivo de proporcionar a reconciliação nacional, ou seja, o fortalecimento do Estado Democrático de Direito sem ressentimentos, mágoa e rancor. E, principalmente, ajudar os Estados que as criaram a impedir a repetição de violações de direitos humanos no futuro.
Como indica Politi, os objetivos primordiais de uma Comissão da Verdade são: “combater a impunidade, restaurar a dignidade e facilitar o direito das vítimas à verdade; acentuar a responsabilidade do Estado e recomendar reformas do aparato institucional, contribuir para justiça e reparação e reduzir conflito e promover a reconciliação a paz”[8].
                                               

-------------------------------------------

Referências

Comissões da verdade latino-americanas são anteriores à brasileira. Disponível em < http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI155976,81042-Comissoes+da+verdade+latinoamericanas+sao+anteriores+a+brasileira> Acesso em  10/10/2012

LEI Nº 12.528, DE 18 DE NOVEMBRO DE 2011. Disponível em < http://www.cnv.gov.br/sobre-a-comissao-da-verdade/conheca-a-lei-que-criou-a-comissao-nacional-da-verdade/> Acesso em 26/09/12

LEITÃO, Miriam. Diplomata Heraldo Munõz resgata história da luta do Chile contra a ditadura de Pinochet. Disponível em <http://g1.globo.com/globo-news/miriam-leitao/videos/t/todos-os-videos/v/diplomata-heraldo-munoz-resgata-historia-da-luta-do-chile-contra-a-ditadura-de-pinochet/1973206/ Acesso em 26/09/12.

POLITI, Maurice. A Comissão da Verdade no Brasil. Cartilha do Núcleo de Preservação da Memória Política. Disponível em
<http://www.nucleomemoria.org.br/imagens/banco/files/documentos/cartilha_web_%28capamiolo%29_sd.pdf> Acesso em 18/03/2012.
                       
 WINAND, Érica Cristina Alexandre; BIGATÃO, Juliana de Paula. A Política Brasileira para os Direitos Humanos e sua inserção nos jornais: a Comissão Nacional da Verdade. Congresso de 2012 da Associação de Estudos Latino-Americanos, San Francisco, Califórnia, de 23 a 26 de maio de 2012.



[1] Supervisora do Observatório Sul-Americano de Defesa e Forças Armadas, graduada em Relações Internacionais pela Unesp/Franca.
[2] Supervisora do Observatório Sul-Americano de Defesa e Forças Armadas, doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp/ Unicamp/ Puc-SP).
[3] LEI Nº 12.528, DE 18 DE NOVEMBRO DE 2011. Disponível em < http://www.cnv.gov.br/sobre-a-comissao-da-verdade/conheca-a-lei-que-criou-a-comissao-nacional-da-verdade/> Acesso em 26/09/12

[4]  Comissões da verdade latino-americanas são anteriores à brasileira. Disponível em
<http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI155976,81042-Comissoes+da+verdade+latinoamericanas+sao+anteriores+a+brasileira> Acesso em  10/10/2012
[5] LEITÃO, Miriam. Diplomata Heraldo Munõz resgata história da luta do Chile contra a ditadura de Pinochet. Disponível em <http://g1.globo.com/globo-news/miriam-leitao/videos/t/todos-os-videos/v/diplomata-heraldo-munoz-resgata-historia-da-luta-do-chile-contra-a-ditadura-de-pinochet/1973206/ Acesso em 26/09/12.
[6] POLITI, Maurice. A Comissão da Verdade no Brasil. Cartilha do Núcleo de Preservação da Memória Política. Disponível em
<http://www.nucleomemoria.org.br/imagens/banco/files/documentos/cartilha_web_%28capamiolo%29_sd.pdf> Acesso em 18/03/2012.
[7] LEITÃO, op. cit.
[8] POLITI, op. cit.

Nenhum comentário:

Postar um comentário