Heed Mariano Silva Pereira[1]
Juliana de Paula Bigatão[2]
Um
forte debate tem tomado as páginas dos jornais e interferido constantemente na relação
do Poder Executivo com os membros das Forças Armadas, tanto da ativa quanto da
reserva no Brasil: a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV). A função
desta comissão, estabelecida pela Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, é
apurar as graves violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, com
a finalidade de promover o direito à memória e à verdade histórica e a
reconciliação nacional.[3]
A
CNV começou a ser desenhada em 2004, quando o então presidente da República,
Luiz Inácio Lula da Silva, propôs a organização do “Arquivo da Intolerância”,
cuja função era tornar público o acesso a todo e qualquer documento que
estivesse sob a tutela do Estado a respeito do regime militar no Brasil
(1964-1985). Entretanto, uma lei assinada pelo governo anterior, de Fernando
Henrique Cardoso, restringia severamente o acesso a esses documentos e,
juntamente ao debate público que surgiu sobre o tema, o projeto do presidente
Lula acabou por não vingar.
Em
2007, começou-se a discutir a possibilidade de uma Justiça de Transição, que
dependeria do esclarecimento dos atos de violação aos direitos humanos
praticados durante os “anos de chumbo”, para que as decisões tomadas pela
Justiça entre o período de transição do regime militar para o regime
democrático fossem revistas e as vítimas e seus familiares tivessem direito à
reparação. Foi neste momento que a ideia da criação de uma CNV começou a ganhar
força, o que se confirmaria a partir da reformulação do Programa Nacional de
Direito Humanos (PNDH-3), ao final de 2009 e cujas ideias surgiram na 11ª
Conferência Nacional de Direitos Humanos.
A
partir daquele momento, um intenso embate entre o Ministério da Defesa e a Secretaria
Especial de Direitos Humanos foi travado nos bastidores do governo e na
imprensa nacional. O primeiro apresentava muitas ressalvas quanto a criação de
uma comissão da verdade; já o segundo a entendia como necessária à consolidação
da democracia no Brasil. O presidente Lula determinou, por decreto, a criação
de um grupo de trabalho interministerial para a elaboração do projeto de lei
que criaria a CNV e em seguida o remeteria para votação no Congresso Nacional. Entretanto,
foi sua sucessora, a presidenta Dilma Rousseff, que sancionou o projeto de lei
em 18 de novembro de 2011, após muita negociação envolvendo os ministros da
Defesa e dos Direitos Humanos, os militares, além de deputados e senadores que
tiveram que se posicionar quanto ao conteúdo e viabilidade do projeto.
No
mesmo período em que se discutiu a criação da CNV, a Lei de Acesso à Informação
também foi amplamente debatida, negociada e aprovada, pois seria essencial para
garantir o acesso irrestrito aos arquivos do período militar e a todos os
demais documentos de natureza pública ao longo dos anos, desde que respeitados
os prazos mínimos e máximos para divulgação, dependendo do grau de sigilo.
Neste
momento o Brasil seguia os passos de outros países que já haviam passado pela
experiência de criar comissões da verdade, como: a Argentina (1983), o Paraguai
(2004), o Chile (1986 e 2003), o Uruguai (1985 e 2000), o Peru (2001), o
Equador (1996 e 2008), a Bolívia (1982), a Guatemala (1999), El Salvador
(1992), o Panamá (2001), o Haiti (1995), o Canadá (2009), o estado da Carolina
do Norte nos Estados Unidos (2004), o Timor Leste (2002 e 2005), a Indonésia
(2005), a Coréia do Sul (2000 e 2005), o Nepal (1990), a África do Sul (1995),
Uganda (1974 e 1986), o Sri Lanka (1994), as Ilhas Maurício (2009), as Ilhas
Salomão (2009), o Togo (2009), o Quênia (2009), o Zimbabué (1985), o Chade (1991),
a Nigéria (1999), Gana (2002), Serra Leoa (2002), o Marrocos (2004), a
República Democrática do Congo (2004), a Libéria (2006), a Alemanha (1992) e a
República Federal da Iugoslávia (2001).[4] Cada país teve seus motivos
para criar tais comissões; porém, a finalidade de conhecer a verdade e fazer
justiça àqueles que lutaram pela democracia em seus países esteve presente na
maioria dos casos.
Apesar
desse intenso debate, muitos se perguntaram, por que criar uma comissão verdade?
Em que momento criá-la? Para que serve? Em primeiro lugar, conforme já
mencionado, o propósito dessas comissões foi realizar uma análise profunda do
que ocorreu nos países que vivenciaram a experiência de um golpe militar ou de
uma guerra civil e, consequentemente, presenciaram episódios de violação dos
direitos humanos. Segundo Heraldo Munõz, subsecretario geral das Nações Unidas
(ONU), diretor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para
a América Latina e Caribe, e um dos maiores especialistas no tema, o elemento
fundamental na criação de todas as comissões da verdade “é fazer justiça, ajudar a justiça”[5]. Embora de acordo com seus
relatos a maioria das comissões já criadas não tenha responsabilidade jurídica,
elas cumprem uma função complementar importante, de garantir a transição entre
o período autoritário para o Estado Democrático de Direito.
Para
Priscilla Hayner, fundadora do Centro Internacional de Justiça de Transição, as
comissões da verdade
(...) também
asseguram que a própria narrativa torne-se o veículo principal para o
reconhecimento do direito de as vítimas contarem a sua própria verdade,
opondo-se à verdade oficial construída durante os anos de arbitrariedade e
violência. Ao fazer isso, restaura-se a dignidade dos que sofreram esses abusos
e violações ao mesmo tempo em que o Estado, mediante o mecanismo institucional
da Comissão da Verdade, passa a legitimar outra versão da História.[6]
Mas,
em que momento? Para Munõz, “os processos
de transição têm seus tempos e seus tempos são ditados pela realidade local. O
importante é que a justiça de transição aconteça e talvez alguns países, como
Brasil, tomam mais tempo por causa da natureza do sistema politico, da
realidade política (...)”[7]. Ou seja, o país deve
passar por um amadurecimento político-institucional, bem com rever algumas de
suas leis, tal como a Lei de Acesso à Informação, para que este momento torne-se
oportuno.
Por
fim, a outra pergunta a ser respondida é sobre sua finalidade. Tanto no Brasil
como nos demais países em que foram criadas, as comissões da verdade tem com
função primordial contar a história do que ocorreu com aqueles que se dispuseram
a enfrentar estes regimes e que sofreram as mais violentas formas de punições,
tais como torturas, desaparecimentos forçados e morte, praticados por agentes
do Estado, em nome de suas crenças e ideologias. No caso do Brasil, muitos
destes casos ainda permanecem sem respostas. Com o funcionamento da CNV,
espera-se que as famílias tenham a possibilidade de saber o que ocorreu com
seus seres queridos, assim como a sociedade em geral conhecer a verdade dos
acontecimentos históricos durante o regime militar.
Além
disso, as comissões tem também o objetivo de proporcionar a reconciliação
nacional, ou seja, o fortalecimento do Estado Democrático de Direito sem
ressentimentos, mágoa e rancor. E, principalmente, ajudar os Estados que as
criaram a impedir a repetição de violações de direitos humanos no futuro.
Como
indica Politi, os objetivos primordiais de uma Comissão da Verdade são: “combater a impunidade, restaurar a dignidade
e facilitar o direito das vítimas à verdade; acentuar a responsabilidade do
Estado e recomendar reformas do aparato institucional, contribuir para justiça
e reparação e reduzir conflito e promover a reconciliação a paz”[8].
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Referências
Comissões da verdade latino-americanas são anteriores à
brasileira. Disponível em <
http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI155976,81042-Comissoes+da+verdade+latinoamericanas+sao+anteriores+a+brasileira>
Acesso em 10/10/2012
LEI Nº 12.528, DE 18
DE NOVEMBRO DE 2011. Disponível em < http://www.cnv.gov.br/sobre-a-comissao-da-verdade/conheca-a-lei-que-criou-a-comissao-nacional-da-verdade/>
Acesso em 26/09/12
LEITÃO, Miriam. Diplomata Heraldo Munõz resgata história da
luta do Chile contra a ditadura de Pinochet. Disponível em
<http://g1.globo.com/globo-news/miriam-leitao/videos/t/todos-os-videos/v/diplomata-heraldo-munoz-resgata-historia-da-luta-do-chile-contra-a-ditadura-de-pinochet/1973206/
Acesso em 26/09/12.
POLITI, Maurice. A Comissão da Verdade no Brasil.
Cartilha do Núcleo de Preservação da Memória Política. Disponível em
<http://www.nucleomemoria.org.br/imagens/banco/files/documentos/cartilha_web_%28capamiolo%29_sd.pdf>
Acesso em 18/03/2012.
WINAND, Érica
Cristina Alexandre; BIGATÃO, Juliana de Paula. A Política Brasileira para os Direitos Humanos e sua inserção nos
jornais: a Comissão Nacional da Verdade. Congresso de 2012 da Associação de
Estudos Latino-Americanos, San Francisco, Califórnia, de 23 a 26 de maio de
2012.
[1] Supervisora do Observatório
Sul-Americano de Defesa e Forças Armadas, graduada em Relações Internacionais
pela Unesp/Franca.
[2] Supervisora do Observatório
Sul-Americano de Defesa e Forças Armadas, doutoranda em Relações Internacionais
pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp/ Unicamp/ Puc-SP).
[3] LEI Nº 12.528, DE 18 DE
NOVEMBRO DE 2011. Disponível
em <
http://www.cnv.gov.br/sobre-a-comissao-da-verdade/conheca-a-lei-que-criou-a-comissao-nacional-da-verdade/>
Acesso em 26/09/12
<http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI155976,81042-Comissoes+da+verdade+latinoamericanas+sao+anteriores+a+brasileira>
Acesso em 10/10/2012
[5]
LEITÃO, Miriam. Diplomata Heraldo Munõz resgata história da
luta do Chile contra a ditadura de Pinochet. Disponível em
<http://g1.globo.com/globo-news/miriam-leitao/videos/t/todos-os-videos/v/diplomata-heraldo-munoz-resgata-historia-da-luta-do-chile-contra-a-ditadura-de-pinochet/1973206/
Acesso em 26/09/12.
[6] POLITI, Maurice. A
Comissão da Verdade no Brasil. Cartilha do Núcleo de Preservação da Memória
Política. Disponível em
<http://www.nucleomemoria.org.br/imagens/banco/files/documentos/cartilha_web_%28capamiolo%29_sd.pdf>
Acesso em 18/03/2012.
[7]
LEITÃO, op. cit.
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